terça-feira, outubro 5

Momentos

Não tenho muito o hábito de retractar momentos ou situações... sucede por vezes, em que tal como agora, qualquer espaço de tempo passado merece especial atenção e pede por si mesmo, o relevo e o destaque merecido. Acontece que há destes surtos nostálgicos que nos assolam e convencem absolutamente da necessidade de projectar contextos e vivências de hoje num qualquer amanhã em que tudo recordaremos com um sorriso sábio no canto do lábio, aquele de quem já nada percebe.
O isqueiro era novo... comprado ainda há minutos no café da esquina, que por acaso nem fica numa esquina. Vinha junto com o jornal e desconfio que o isqueiro nunca se apercebeu que o jornal era legível, como seria de esperar - e como tal, não acendeu. Sorri. Novamente o isqueiro não se apercebeu da realidade que o envolvia, e tornou a não acender. Apeteceu-me gritar... isqueiro desleal, este imbecil que me haviam vendido por cento e cinquenta paus no café... maldita produção em série, péssima escolha de cor - seria talvez o único daquela caixa que estava avariado. Apesar de já lhe ter algum apêgo, descartei-me dele com a profunda convicção de que tal isqueiro jamais me daria a confiança de que não abdico nos meus utensílios - não me seria útil nem fiável em momentos de apuros. Restou-me uma enorme vontade de fumar para preencher o vazio que a situação me causara.
Algures numa caverna habitava um velho senhor de longas barbas brancas. Trajava de púrpura pálido como a pele que o cobria. Os seus ossos salientes reforçavam o olhar denso e penetrante que nos crivava o âmago de incerteza e ansiedade. Ali sozinho, vivia tal personagem qual druida, feiticeiro dos tempos de outrora... numa cave que lá tinha, descíamos uma escada tacteando. Então ele acendia um fósforo e depois uma lâmpada triclitante que , ou nos mostrava mais do que queríamos ver, ou descia abruptamente de intensidade em crises momentâneas da minha existência. Aproximava-se então de uma jaula e conversava, numa língua que tinha tanto de imperceptível quanto de indizível, com um ser insecto-repto-humano. As conversas duravam escassos segundos e em seguida cada um deles, separados por grades, inseria um pequeno morcego vivo na boca e engolia-o em três dentadas. Mais uma palavre era dita e apenas hoje entendi o seu significado. Eu não consegui perceber porque é que no fim de tudo eles acabavam sempre por dizer «isqueiro».

1 comentário:

Elsa disse...

Druídas, feiticeiros e fadas... :) devias ler as "Bumas de Avalon"!!!!!!!

Quanto ao isqueiro, talvez fosse ele um Druida disfarsado que, teimosamente, te queria enviar um sinal... o quê, só tu podes descobrir...