terça-feira, agosto 23

Corrosão

Janelas de percepção, projecções do infinito ante o meu olhar, espraiam-se em visões próximas, belas luzes, amores e cores fecundam um riacho seco, estalado da dor que tudo queima, abrandam o próprio tempo e fazem-me assim, ali, despender em contemplação sonhos tais, que ousam não terminar.

Percorro florestas densas, através do mato seco, das pastagens mortas pelo calor, que ora sobe, ora se abate sem clemência sobre mim. As provações são sucessivas, até se chegar ao horizonte. Alcanço a miragem finalmente! Meses se diluem nesta recompensa, sangue, suor e lágrimas agora são nada.

Diante de mim, ergue-se um castelo. Vejo uma entrada de pedra em forma de arco, rodeada por arbustos que jamais foram podados. Ao fundo, um lugar soturno desperta-me a curiosidade por breves instantes. O sino ecoa quando o vejo pela primeira vez. Não lhe toquei, talvez o vento seja o responsável. Passo o portão lentamente, como quem desconfia. E desconfio de tudo ali, das paredes, da pedra, das plantas por podar, do sino que toca sem razão, do vento e da porta.

Não bato - abro de uma vez a porta. Entro num magnífico Hall. Lustre encantado, rodeado por brilhantes estrelas, tapete vermelho sangue, velas por todo o lado, uma enorme escadaria e três portas.

O odor é delicioso e dou por mim no centro deste panorama, imaginando as maravilhas que se escondem por detrás de cada porta fechada que encontro. Do lado esquerdo, ouço ruídos e ali me dirijo sem demora. A surpresa é devastadora.

Nesta sala fétida, sentados em torno de uma mesa velha e escura, longe do canto da lareira e do bilhar, vejo claramente um pato, um urso, um touro e um druida, juntos, jogarem à sueca. O pato não tem penas, vê-se claramente que é astuto - não tem nada de pato, para além da aparência. Tem uns óculos que lhe dão um ar "patético". De pele rosada, crivada de pequenos orifícios, raízes de penas que lhe mancham todo o corpo. Joga bem, e faz par com o druida.
O druida, é somente um velhote pálido, assustador. Traja de branco a condizer com a barba. Sobre a sua cabeça paira um capuz bege. Com o olhar sempre baixo, e fala muito pouco. O touro e o urso, são caricatos por estarem sentados em bancos, mas são apenas um touro e um urso jogando em parelha à sueca. O urso cheio de pelo, como seria de esperar, existem sempre pelos a cair perto dele, pelos no ar, novelos no chão. O touro, musculado e negro, brilha sob a luz da lanterna.

Ouso aproximar-me, subir o degrau onde a insanidade nos espera. Faço-o ousadamente, não o digo para me sentir guerreiro, mas porque assim aconteceu.

A lanterna de querosene pingou quase sempre, enquanto o jogo decorreu. Parava por momentos, para as gotas pingarem ao contrário, para cima. A sua luz ali, era fraca mas muito adequada. Ante mim as cartas desfilavam e as palavras eram tão óbvias que nunca ali por nós foram ditas, e assim todos nos conhecemos profundamente. Não éramos todos iguais claramente... falo em nós.. eu sou o quinto elemento nesta história.

Desde então, nunca desci esse degrau, ouso permanecer no nível superior. Conheço-os profundamente, acompanham-me e não me irão deixar tão cedo.

Juntos, aproximamos-nos do Hall de entrada para descobrir o resto da miragem. Não nos podemos reter aqui por muito tempo. A próxima porta é-nos desconhecida. Nenhum de nós conhecia para além daquela sala e Hall.

Ousamos abri-la e percorremos um corredor longo.

Somos perseguidos por algo, julgo tratar-se de um felino altamente inteligente, mas ainda não o percebi, são as sombras que o denunciam a cada lanterna que passamos. Estas lanternas não pingam. O chão pinga para as lanternas, mas já todos estamos habituados.

Após algumas centenas de metros, sempre perseguidos por um ser ainda indefinido, surge finalmente uma porta ladeada por duas lanternas no fim do túnel.

Abro a porta, e deparamo-nos com o Hall de entrada.

Hum-mm... já eliminámos três portas, pensamos nós. Resta a escadaria e o estranho ser que nos persegue no escuro. Vamos avançar, para já juntos. Eu e o Druida à frente, os restantes vigiam a retaguarda. Somos bastantes, e temos do nosso lado a força da miragem. Todos a vimos, e ali nos encontramos a vivê-la!

Subimos triunfantes a escadaria. Esta enrolava-se sobre si mesma, e subia em elipse. Assim subimos nós, elipse acima vigiando a retaguarda, vigiando a frente com o despeito de quem sabe e quer subir mais um degrau, um de cada vez, elipse acima. Subimos centenas de metros, sem esmorecer, vendo a elipse crescer para os céus, lanternas suspensas no ar iluminando-nos o caminho escuro, à esquerda e à direita nada para nos amparar. Degraus sobre degraus até ao topo. Olhar para além dos degraus era um convite à loucura. O abismo para o Hall era cada vez mais assustador, até ao Hall se tornar num pequeno ponto vermelho que se vislumbrava por entre degraus ao longe. Assim, o risco de cair parecia menor, só existem degraus e nós, não há como nos enganarmos!

Esta provação teria sentido? Porquê subir? E porque não?

Degrau a degrau, juntos avançámos. Juntos subimos até ao topo. Terminava numa parede com uma passagem em arco. À frente, por entre as nuvens reparo num tear. De seguida dou comigo a observar uma armadura antiga. O pato está comigo, o druida fala com o urso acerca da nossa localização actual. O touro está completamente cansado. Subir escadas é mais difícil com cascos. Deseja uma cama e esta do nada surge. Ficamos pasmados enquanto o touro descansa!

Estamos muito perto dos Deuses, mas para já não vemos mais escadas.